sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Carta aberta.



Às vezes eu imagino o que você diria.

Sim, você mesma, a jovem Rebeca de 14 anos, cuja realidade era assertiva e descomplicada — ao menos, na época, tudo era uma questão de vontade ou não de Deus. O peso era distribuído entre o inevitável destino e a culpa de se ter sonhos tolos.

Ao menos, Rebequinha, eles eram vívidos e surpreendentemente suficientes.

Provavelmente, se me olhasse agora, iria se abster pelos inquestionáveis mandamentos do destino. Talvez até se contentaria de que sua insignificância era de fato de nascença e tolerar aquilo que a vida lhe trouxer.

Eu admito minha vergonha na amplitude que acompanha — (ainda) não cheguei nem perto de onde eu queria. O caminho teve muitas encruzilhadas das quais quase sempre optei pelo pior rumo — e pior não só pelos resultados que se seguiram, mas porque foram escolhidos pelas vontades de terceiros.

Você deve reconhecer este anseio, não é?
O peso, o ruído, a cor, o cheiro. São todos iguais. Imutáveis depois de anos de existência.

Infelizmente, sua chegada e motivos não ficam mais claros à medida em que vamos envelhecendo. Os questionamentos continuam ali, ora como perguntas dissertativas, ora como livre escolha, mas, de todo modo, sempre nos despertam insegurança, frustrações e, normalmente, tristeza. Nós ainda pecamos bastante na agilidade em aceitar o que foi. Muito do que foi arranha nossa ínfima autoestima, e dá munição para a autossabotagem fazer da nossa jornada, um caos.

Parecerá interminável, Rebeca. Parecerá insuportável.
Mas vovó dizia: isso também vai passar.

E irá. E passou. E aceitamos, e por fim, esquecemos. Recalculamos a rota e seguimos.

O bom é que não estamos sozinhas, Rebi: temos filhos incríveis e um parceiro tão inacreditavelmente sociável que nos ampara em situações que sabemos que nosso carisma é insuficiente — além de, amorosamente, nos conforta e apoia em toda lágrima enfastiada, todo grito contido, todo silêncio pessimista que apenas nós sabemos produzir. É a nossa rocha. Você sempre quis um parceiro assim. Pois, Rebequinha, te digo: nisso nós acertamos em cheio.

Estou escrevendo essa carta aberta da metade (espero) do itinerário. Passamos, no momento, por uma mudança de rota repentina. Odiamos modificações bruscas, no entanto, acredite: ela doerá no começo, mas com o tempo (e como tudo) irá se tornar plenamente esclarecedora.

No mais, em resumo, duas palavras: estamos indo bem.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Cisma



A parte ruim de escrever é que nem sempre a inspiração acompanha a vontade. Então, vive-se forçando-se — um tal de se obrigar a sentar, ouvir, sentir, pensar, pensar, e pensar. E sentir. E pensar mais um pouco. E logo, despejar toda e qualquer palavra que lhe cabe, que lhe alcança, que lhe soa convidativa a se amansar confortavelmente no papel.

E cá estamos, forçando a inapetência pela linguagem a se expressar, seja ela a maneira que for. Não importa. O importante é ouvir o enfastioso silêncio do hiato criativo e ignorá-lo completamente, deixando-o só.

Mas a a gente também conhece a solidão, né? Quero dizer, aqueles que escrevem sabem bem o que é isso — essa cisma de, a cada passo, narrar tudo em prazeres ou angústias, e saber que ninguém irá entender completamente o que aquilo significa (para a gente).

Só ou não, cá estamos: escrevendo. Nada em particular e, ao mesmo tempo, tudo muito pessoal. É a forma mais sincera de ser e não ser. Ouso dizer que é a única forma de se tanger pelo que é. De existir. De perceber os momentos e saboreá-los, mesmo quando o gosto pende para o amargo — no entanto, pense só: o que é a vida senão um adorno agridoce?

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Quando a esperança te abraça



    Estava à esquina da boa fase da vida, sentia. Restavam alguns poucos passos para uma era de regozijo. Ah! Nenhuma preocupação. Nenhum problema. Em breve, não iria mais reconhecer o gosto amargo do sufoco. Em breve, esqueceria que um dia viveu algum momento sem o som de música, risadas e estalidos do sonho. O sono seria vibrante. A comida seria fervorosa. Até mesmo a água estaria em pé de igualdade com sua clareza. Tudo seria leve. Tudo seria livre. Paz mental por paz de espírito, numa escalada de bel-prazeres infinitos, sem enfastiar, sem nausear, sem privações.

    Sim, estava logo ali. Pertinho. A uma esticada de braço, a um passo mais alargado. Sentia seu calor lhe cercando, sentia a doçura do seu aconchego. Estava se avizinhando, tão próximo que conseguia entender suas nuances tão secretas, tão distintas, tão… Desejadas.

    Tinha certeza de sua adjacência. Durava dias, mas a sentia no hoje. Durava meses, mas a convidava para participar do seu cotidiano.

    Durava anos, mas a apresentava como sua melhor notícia. Sua melhor amiga.

    Sua parte perdida.

domingo, 29 de maio de 2022

Tic, Tac.

 De repente, fico intrigada como o tempo passa e nós não ligamos de fato o que isso quer dizer.

O tempo não é nosso inimigo. 

Tampouco nosso amigo.

Ele só é. Só existe. Só vai colhendo minuto por minuto, segundo por segundo, os momentos que vivemos nesta terra, respirando este ar, sendo tocados pelo sol e pela noite, e por todos os que amamos durante esta passagem. Alguns deles se vão antes do que gostaríamos e forma-se um vazio no peito, uma busca por propósito e razão. Não há. Há apenas a vida sendo a vida, portanto, finita.

Não tenho problema com a morte. Ela existe, ela faz parte do plano carnal. Mas como sou uma pessoa, também estou compelida a não gostar da sua presença. Ela já levou amigos, primos, avós, sogra - pessoas que conheci e até hoje não me conformo que tenha passado tanto tempo sem a companhia deles pelos caminhos que cruzei.

Essa é a vida.

Talvez a gente aprenda a dar valor aos momentos que acordamos e passamos minutos e horas convivendo com aqueles que amamos, sendo cúmplices de suas próprias jornadas.

Eu estou com quase 40 anos. Não pareço, dizem. Também não sinto o peso da idade, mas esta é a prova de que o tempo passa independente da minha aprovação ou atenção. Ele segue sendo ele mesmo, imutável e, às vezes, cruel, mas sem surpresas de sua natureza.

É hora de deixá-lo fluir, em sua palidez, em sua fome de infinidade e doando a nós, pobres mortais, seu sabor de plenitude.

Aproveite-o.


domingo, 13 de março de 2022

Salve a cor da culpa

Há uma marca de nascença que levamos conosco e eles odeiam.

É uma distinção do que somos e pela história, ela não é pálida e nem válida — é vívida de outras cores não-brancas e estas cores carregam ancestralidades sem Pai Nossos.

Eu sou a menina indígena criada num círculo burguês, num bairro caríssimo em São Paulo onde os olhos e dedos eram apontados quando eu passava. Meu lugar era diariamente questionado com inúmeros convites de “o elevador de serviço é por ali” — sendo que morei no mesmo condomínio por 25 anos. Nenhum dos meus irmãos foi convocado à invisibilidade como eu fui.

E eu não entendia.

Mas eu sabia que era diferente. Era escura. Peluda. Cabelos e olhos cor de breu. Boca grande e nenhum nariz de boneca. Era o oposto a todo o resto que me cercava. Me fiz invisível por algum tempo, mas os insultos me encontravam. “Sua mãe te adotou pra ter uma escrava particular”. “Você é uma preta fedida”. “Sua gente deveria estar na senzala”. “Sua mãe sabe que tem uma macaca como filha?”.

Vergonha. Raiva. Mas principalmente, medo.

Ninguém, em escola particular nenhuma, ensinou aos filhos dos burgueses sobre racismo. Não é do interesse da classe dominante, vinda e empoderada pela herança colonial escravocrata, que seus sucessores sejam empáticos com a criadagem. Nunca houve abolicionismo. Houve apenas uma falsa concepção de liberdade — e esta liberdade teve (e ainda é) tomada à força, todos os dias, quando um preto se levanta contra o que o oprime.

Antes de vir morar (novamente) na quebrada com meus filhos e marido, vivi num bairro nobre, num condomínio basicamente habitado por brancos e amarelos. Lá, o segurança do mercado seguia meu filho (pardo) pelos corredores. Lá, a polícia achava suspeito meus filhos de uniforme escolar (público). Lá, o segurança do metrô se sentia ameaçado pelo meu primogênito (de 9 anos) de chinelos. “O que você está fazendo aqui, moleque?, ele disse, quando meu menino ousou dar 3 passos a frente de mim. Não o olhei nos olhos: agarrei Samuel e o coloquei atrás de mim, sabendo que eu não era da cor certa para repreendê-lo. “Me desculpe, senhor, ele está comigo”, foi o que disse, ainda sem olhá-lo. Medo puro, dosado do instinto de defender minha cria.

O segurança bufou e nos mandou ir.

E fomos. Pra nunca mais voltar (de chinelo).

Queria que meus filhos pudessem viver em paz, mas sei que serão sempre os questionáveis. Os ameaçadores. Os culpados. Dói. É doloroso ensiná-los como funciona o nosso país e, não atrás, o mundo. Mas é preciso. A pele é nítida, o berço é de Ogum e Tupã. E será do nosso sangue que virá nosso triunfo. E para isso, os tambores têm que ser tocados. Há fogo para ser lançado no inimigo. Eu quero ser livre, não ter medo de morrer pela bala da Rota ou violentada por homens que não me veem como uma pessoa -ou destinada pelo sistema a nos rastejar no chão, girando, exaustos, o eixo do capitalismo, dia após dia, sem parar.

Eu sou presença de todos que vieram antes de mim, de todos os gritos entalados de sofrimento e desesperança. Eu vou sim te encher o saco do teu racismo. Vou sim defender minha vida que vale menos por eu ser mais escura do que você, na imensa balança da sociedade. A Justiça social é aqui e agora, na quebrada onde ando sem olhares tortos, mas há a bússola atenta dos fardados que buscam sangue não-azul.

Enquanto nós apenas buscamos o direito à vida.

O símbolo da paz é preto e leva pinturas ancestrais.

Seu deus é preto.

O mundo foi parido de uma mulher indígena.

Salve!


sexta-feira, 4 de março de 2022

Sabonete, xampu e prantos



Há algo de errado.

Parece que sempre há algo de errado. Comigo, normalmente. Totalmente. Completamente. Sim, comigo. Um dia após o outro, a sensação de falha, de falsa, de febre em lugares sombrios do meu pensamento. De ardor por uma vida que não me pertence porque não há possibilidades de eu ser do jeito que eu gostaria de ser.

E como eu gostaria de ser? Leve. Talvez livre, de uma liberdade de saber o significado dos seus propósitos existenciais e se gratificar com isso. Apaixonada por mim mesma. Pelos outros eu já sou; por mim mesma, é insustentável, dados os meus erros que viram atributos e os demais atributos servem apenas de descaso de copo.

E a maternidade só serviu para eu seguir apaixonada pelos outros (filhos) e substituir o Eu pelo nós, sendo que este nós tem uma porcentagem bem baixa de…Mim.

Não se engane, eu amo meus filhos. Mas não amo a maternidade. Não amo essa obrigação quase genética em não se permitir ser humana. Mas há o dever e principalmente, o querer de criar criaturinhas pequenas a virarem pessoas leves e livres, como poucas vezes na vida eu fui, e me recordo, é bom. Quero esta sensação para eles, vinda de todo respeito e amor por si mesmos e pelos outros.

É o que todos os pais querem. Alguns, mais que os outros. Alguns, trabalhando pra isso mais do que os outros. Mas a verdade é que não há um manual e assim, cada dia é um free style.

Hoje, como muitos, foi o meu. Por alguma bobagem, lá estava eu, carregando todo o fardo da maternidade sozinha. Por que a gente faz isso? É irracional. Não tem razão. Porque a gente, em teoria, não está sozinha, mas faz a maior parte da corrida sem ajuda, sem ninguém ter ensinado como ser mãe, a alimentar os filhos, a instruí-los, a, de fato, participar de sua criação no cotidiano, saciando suas necessidades.

Por isso digo que há algo errado em mim. Grandemente. Ou sou uma máquina. Não, não sou. Máquinas não sentem sono e meu maior desejo nesta vida é dormir por umas 12 horas seguidas. Ou a maternidade nos implica a sermos 100% disponíveis e inabaláveis, quando no fundo (e na superfície) somos apenas mulheres com muito peso nos ombros.

Carregar o mundo nos ombros é como respirar.

É o que toda mulher sabe fazer, ou aprende a fazê-lo, sem o menor entusiasmo — se bem que algumas, também, aprendem a desfrutar os passos pesados como um sinal de força; a maioria, no entanto, apenas se conforma e se acostuma — embora entorte sua perspectiva da vida e obrigue seus passos a diminuírem o ritmo: parar nunca fora uma opção.

Parece que eu me conformei, ou uma parte de mim se adaptou a isso e a outra ruge sua fúria em longos banhos com sabonete, xampu e prantos.

Aliás, está na hora do meu.

Quando será que as mães serão mais de si mesmas de novo?

quinta-feira, 3 de março de 2022

As linhas não se escrevem



A linha está lá, mas ela não se faz enxergar.

Não conduz a lugar nenhum, mas também não dispersa o caminho.

Ela existe sem existir. Ela permite sem aprovar. Ela prova a cuidadosa fábula da vontade de chegar a um destino desconhecido. E mesmo com dúvidas, ela contempla a certeza de ser.

Das linhas, nascem as palavras— uma após a outra, envolvem-se em pequenas (ou grandes) peculiaridades e desatinam em emoções infinitas. Elas não se explicam, elas só são. Existem. Persistem. Talvez, irão evoluir. E um dia, certamente, morrem.

É o dia do testamento. Da eternidade não traduzida. Da singularidade de escrever o ditado pelo coração, sem Norte, sem Sul, de um caminho de linhas tortas, rotas indefinidas e sentimentos em erupções.

Escrever é a posse do tormento. E o tormento, agora, só quer paz.