domingo, 13 de março de 2022

Salve a cor da culpa

Há uma marca de nascença que levamos conosco e eles odeiam.

É uma distinção do que somos e pela história, ela não é pálida e nem válida — é vívida de outras cores não-brancas e estas cores carregam ancestralidades sem Pai Nossos.

Eu sou a menina indígena criada num círculo burguês, num bairro caríssimo em São Paulo onde os olhos e dedos eram apontados quando eu passava. Meu lugar era diariamente questionado com inúmeros convites de “o elevador de serviço é por ali” — sendo que morei no mesmo condomínio por 25 anos. Nenhum dos meus irmãos foi convocado à invisibilidade como eu fui.

E eu não entendia.

Mas eu sabia que era diferente. Era escura. Peluda. Cabelos e olhos cor de breu. Boca grande e nenhum nariz de boneca. Era o oposto a todo o resto que me cercava. Me fiz invisível por algum tempo, mas os insultos me encontravam. “Sua mãe te adotou pra ter uma escrava particular”. “Você é uma preta fedida”. “Sua gente deveria estar na senzala”. “Sua mãe sabe que tem uma macaca como filha?”.

Vergonha. Raiva. Mas principalmente, medo.

Ninguém, em escola particular nenhuma, ensinou aos filhos dos burgueses sobre racismo. Não é do interesse da classe dominante, vinda e empoderada pela herança colonial escravocrata, que seus sucessores sejam empáticos com a criadagem. Nunca houve abolicionismo. Houve apenas uma falsa concepção de liberdade — e esta liberdade teve (e ainda é) tomada à força, todos os dias, quando um preto se levanta contra o que o oprime.

Antes de vir morar (novamente) na quebrada com meus filhos e marido, vivi num bairro nobre, num condomínio basicamente habitado por brancos e amarelos. Lá, o segurança do mercado seguia meu filho (pardo) pelos corredores. Lá, a polícia achava suspeito meus filhos de uniforme escolar (público). Lá, o segurança do metrô se sentia ameaçado pelo meu primogênito (de 9 anos) de chinelos. “O que você está fazendo aqui, moleque?, ele disse, quando meu menino ousou dar 3 passos a frente de mim. Não o olhei nos olhos: agarrei Samuel e o coloquei atrás de mim, sabendo que eu não era da cor certa para repreendê-lo. “Me desculpe, senhor, ele está comigo”, foi o que disse, ainda sem olhá-lo. Medo puro, dosado do instinto de defender minha cria.

O segurança bufou e nos mandou ir.

E fomos. Pra nunca mais voltar (de chinelo).

Queria que meus filhos pudessem viver em paz, mas sei que serão sempre os questionáveis. Os ameaçadores. Os culpados. Dói. É doloroso ensiná-los como funciona o nosso país e, não atrás, o mundo. Mas é preciso. A pele é nítida, o berço é de Ogum e Tupã. E será do nosso sangue que virá nosso triunfo. E para isso, os tambores têm que ser tocados. Há fogo para ser lançado no inimigo. Eu quero ser livre, não ter medo de morrer pela bala da Rota ou violentada por homens que não me veem como uma pessoa -ou destinada pelo sistema a nos rastejar no chão, girando, exaustos, o eixo do capitalismo, dia após dia, sem parar.

Eu sou presença de todos que vieram antes de mim, de todos os gritos entalados de sofrimento e desesperança. Eu vou sim te encher o saco do teu racismo. Vou sim defender minha vida que vale menos por eu ser mais escura do que você, na imensa balança da sociedade. A Justiça social é aqui e agora, na quebrada onde ando sem olhares tortos, mas há a bússola atenta dos fardados que buscam sangue não-azul.

Enquanto nós apenas buscamos o direito à vida.

O símbolo da paz é preto e leva pinturas ancestrais.

Seu deus é preto.

O mundo foi parido de uma mulher indígena.

Salve!


sexta-feira, 4 de março de 2022

Sabonete, xampu e prantos



Há algo de errado.

Parece que sempre há algo de errado. Comigo, normalmente. Totalmente. Completamente. Sim, comigo. Um dia após o outro, a sensação de falha, de falsa, de febre em lugares sombrios do meu pensamento. De ardor por uma vida que não me pertence porque não há possibilidades de eu ser do jeito que eu gostaria de ser.

E como eu gostaria de ser? Leve. Talvez livre, de uma liberdade de saber o significado dos seus propósitos existenciais e se gratificar com isso. Apaixonada por mim mesma. Pelos outros eu já sou; por mim mesma, é insustentável, dados os meus erros que viram atributos e os demais atributos servem apenas de descaso de copo.

E a maternidade só serviu para eu seguir apaixonada pelos outros (filhos) e substituir o Eu pelo nós, sendo que este nós tem uma porcentagem bem baixa de…Mim.

Não se engane, eu amo meus filhos. Mas não amo a maternidade. Não amo essa obrigação quase genética em não se permitir ser humana. Mas há o dever e principalmente, o querer de criar criaturinhas pequenas a virarem pessoas leves e livres, como poucas vezes na vida eu fui, e me recordo, é bom. Quero esta sensação para eles, vinda de todo respeito e amor por si mesmos e pelos outros.

É o que todos os pais querem. Alguns, mais que os outros. Alguns, trabalhando pra isso mais do que os outros. Mas a verdade é que não há um manual e assim, cada dia é um free style.

Hoje, como muitos, foi o meu. Por alguma bobagem, lá estava eu, carregando todo o fardo da maternidade sozinha. Por que a gente faz isso? É irracional. Não tem razão. Porque a gente, em teoria, não está sozinha, mas faz a maior parte da corrida sem ajuda, sem ninguém ter ensinado como ser mãe, a alimentar os filhos, a instruí-los, a, de fato, participar de sua criação no cotidiano, saciando suas necessidades.

Por isso digo que há algo errado em mim. Grandemente. Ou sou uma máquina. Não, não sou. Máquinas não sentem sono e meu maior desejo nesta vida é dormir por umas 12 horas seguidas. Ou a maternidade nos implica a sermos 100% disponíveis e inabaláveis, quando no fundo (e na superfície) somos apenas mulheres com muito peso nos ombros.

Carregar o mundo nos ombros é como respirar.

É o que toda mulher sabe fazer, ou aprende a fazê-lo, sem o menor entusiasmo — se bem que algumas, também, aprendem a desfrutar os passos pesados como um sinal de força; a maioria, no entanto, apenas se conforma e se acostuma — embora entorte sua perspectiva da vida e obrigue seus passos a diminuírem o ritmo: parar nunca fora uma opção.

Parece que eu me conformei, ou uma parte de mim se adaptou a isso e a outra ruge sua fúria em longos banhos com sabonete, xampu e prantos.

Aliás, está na hora do meu.

Quando será que as mães serão mais de si mesmas de novo?

quinta-feira, 3 de março de 2022

As linhas não se escrevem



A linha está lá, mas ela não se faz enxergar.

Não conduz a lugar nenhum, mas também não dispersa o caminho.

Ela existe sem existir. Ela permite sem aprovar. Ela prova a cuidadosa fábula da vontade de chegar a um destino desconhecido. E mesmo com dúvidas, ela contempla a certeza de ser.

Das linhas, nascem as palavras— uma após a outra, envolvem-se em pequenas (ou grandes) peculiaridades e desatinam em emoções infinitas. Elas não se explicam, elas só são. Existem. Persistem. Talvez, irão evoluir. E um dia, certamente, morrem.

É o dia do testamento. Da eternidade não traduzida. Da singularidade de escrever o ditado pelo coração, sem Norte, sem Sul, de um caminho de linhas tortas, rotas indefinidas e sentimentos em erupções.

Escrever é a posse do tormento. E o tormento, agora, só quer paz.

quarta-feira, 2 de março de 2022

O gosto da vida



Quando você deixa a frustração entrar, ela azeda seu gosto pela vida. Ela empedra o perfume da sua esperança, empoeira os pergaminhos onde listou suas coisas favoritas. Ela trancafia seus melhores e mais autênticos sorrisos e os substitui por suspiros e olhares perdidos. Às vezes, consegue emplacar uns palavrões nas suas frases de agradecimento, colocar cascalhos nas suas horas de vôos e a regar com enxofre aquele solo à beira da infinidade da alma, onde semeou seus sonhos.

Claro, ela faz parte da vida, nada mais natural. Uma hora ou outra ela bate à porta, mas o que dizem é que, na idade adulta, você consegue driblar alguns dos seus talhos e aprender com as coordenadas errôneas que usou. Mas quando ela se alimenta daquela sua sutil sensação de fracasso que ocasionalmente aflora naqueles momentos onde mede com a pesada régua comunitária seu progresso na vida com a de todos que aparecem no seu feed social, ela tende a alastrar doses venenosas por todos os seus cenários de sol. Dali a pouco torna-se imperatriz de um território que antes era só seu, cujas cores e deleitosos aromas da autenticidade eram as anfitriãs e agora, é moradia de um céu desbotado e odor insípido.

Você conhece bem essa dor que esvazia sua bagagem; sabe como ela, traiçoeiramente, zune mentiras ao pé do ouvido durante à noite, onde sua guarda está solitária e desprevenida portanto, receptível. Sem quase perceber, ela instala residência e segue com a rotina de enfraquecer todas as suas defesas, misturando-se com o habitual cronograma e fazendo-se de visita prazenteira - quando, é claro, não é.

Ela com certeza não é.
E você sabe disso. Você começa a ouvir ruídos quando ela chia no ouvido; percebe que o papel de parede não é do seu gosto e o muda - coloca sua música favorita para tocar. Sente-se à vontade para sorrir sem motivo. Nota que seus pés estão pesados demais para voar, e gentilmente os liberta das amarras.

Ah, a leveza de ser. Tudo bem deixar a frustração entrar - e tudo bem que ela prolongue a estadia. Porque você sabe que, cedo ou tarde, voltará a reinar no seu universo e ela, que muitas vezes abocanha velhas crenças, vai perdendo o jeito de te dominar e de tirar o seu gosto pela vida.

E o gosto não é nada azedo, não é?