quarta-feira, 2 de março de 2022
O gosto da vida
Quando você deixa a frustração entrar, ela azeda seu gosto pela vida. Ela empedra o perfume da sua esperança, empoeira os pergaminhos onde listou suas coisas favoritas. Ela trancafia seus melhores e mais autênticos sorrisos e os substitui por suspiros e olhares perdidos. Às vezes, consegue emplacar uns palavrões nas suas frases de agradecimento, colocar cascalhos nas suas horas de vôos e a regar com enxofre aquele solo à beira da infinidade da alma, onde semeou seus sonhos.
Claro, ela faz parte da vida, nada mais natural. Uma hora ou outra ela bate à porta, mas o que dizem é que, na idade adulta, você consegue driblar alguns dos seus talhos e aprender com as coordenadas errôneas que usou. Mas quando ela se alimenta daquela sua sutil sensação de fracasso que ocasionalmente aflora naqueles momentos onde mede com a pesada régua comunitária seu progresso na vida com a de todos que aparecem no seu feed social, ela tende a alastrar doses venenosas por todos os seus cenários de sol. Dali a pouco torna-se imperatriz de um território que antes era só seu, cujas cores e deleitosos aromas da autenticidade eram as anfitriãs e agora, é moradia de um céu desbotado e odor insípido.
Você conhece bem essa dor que esvazia sua bagagem; sabe como ela, traiçoeiramente, zune mentiras ao pé do ouvido durante à noite, onde sua guarda está solitária e desprevenida portanto, receptível. Sem quase perceber, ela instala residência e segue com a rotina de enfraquecer todas as suas defesas, misturando-se com o habitual cronograma e fazendo-se de visita prazenteira - quando, é claro, não é.
Ela com certeza não é.
E você sabe disso. Você começa a ouvir ruídos quando ela chia no ouvido; percebe que o papel de parede não é do seu gosto e o muda - coloca sua música favorita para tocar. Sente-se à vontade para sorrir sem motivo. Nota que seus pés estão pesados demais para voar, e gentilmente os liberta das amarras.
Ah, a leveza de ser. Tudo bem deixar a frustração entrar - e tudo bem que ela prolongue a estadia. Porque você sabe que, cedo ou tarde, voltará a reinar no seu universo e ela, que muitas vezes abocanha velhas crenças, vai perdendo o jeito de te dominar e de tirar o seu gosto pela vida.
E o gosto não é nada azedo, não é?
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